Diante da Morte

Vômito amarelado, peça de dama (jogo de tabuleiro) perdida em meio a gosma, formada no chão. Essa foi a cena que marcou a minha descoberta como indivíduo. A partir desse episódio, comecei a entender que eu era responsável pela minha vida e pelo meu corpo – marca a fase do, “desde que me entendo por gente”, como diria na linguagem popular. Como se fosse um filme picotado, com pequenos flashes, recordo-me deste dia, como se fosse hoje. Eu deveria ter de três a quatro anos no máximo. Para que você (leitor) entenda melhor a história, vou rebobinar um pouco o filme, e contar a história desde o começo.

Era uma tarde ensolarada, por volta das 13 horas, eu havia acabado de almoçar na companhia da minha tia e primos. Aproveitando a distração da minha tia – que estava nos cuidando -, enquanto ela lavava as louças do almoço, eu e o meu primo (que tem a mesma idade) decidimos brincar de engolir peças de dama na garagem da nossa casa. Mal imaginávamos que esta brincadeira colocaria em risco a minha vida. Pior, que só estávamos imitando a arte predileta dos meus irmãos mais velhos. Na época, eles brincavam de engolir bolinhas de gude e moedas. O mérito da disputa era determinado pelo tamanho dos objetos – quanto maior, melhor. Neste momento, lembro-me de uma frase do professor de biologia do cursinho, e começo a achar que faz sentido.

“A criança, antes de ser educada, ela precisa ser domesticada. Não riam, não (referindo-se aos alunos). Se deixar, elas comem até m…… do vaso sanitário.”

Já a aposta que eu fiz com o meu primo, consistia em ver quem engolia mais peças. Eu, que sempre adorei desafios, durante o jogo, queria manter a fama da mais corajosa da dupla. Com isso, decidi que seria a primeirinha (conforme costumávamos nos numerar durante as brincadeiras). Sem pensar duas vezes, engoli o pedaço de plástico, com a mesma empolgação que comia uma sobremesa.

Morte: sonho ou pesadelo?

Quando me dei conta da gravidade do meu erro, comecei a entrar em pânico. Percebi que era tarde demais, não conseguia fazer a peça voltar. Sentia ela entalada em um ponto da garganta, tenho a impressão que esta parte é semelhante a uma mangueira sanfonada. Os detalhes da peça, a parte enrugada – que serve para encaixar outra peça, quando o(a) jogador(a) ganha o direito de ser dama -, ficou presa de tal forma no tubo, que conforme o movimento que eu fazia, sentia ela rasgando a cavidade do meu pescoço. Qualquer esforço, para tragar o ar era inútil. Não conseguia nem inspirar, nem expirar a peça. Tentava ajudar com a imaginação, visualizando o trajeto da digestão, mas, por mais força que eu fazia para empurrá-la, não conseguia movê-la nenhum milímetro.

Senti uma aflição e uma angústia tomando conta de mim. Não conseguia entender o que estava acontecendo. Sei que cada segundo que se passava, sentia-me mais asfixiada e sem ar. Parecia que o mundo havia parado naquele momento. Até então, nunca havia ficado afônica (sem voz). Como não conseguia me comunicar, só me restava chorar. Eu que era chorona – tinha até um apelido em japonês por causa dessa característica -, fiquei incomodada, ao perceber as lágrimas escorrem, sem o som do choro. Sei que era muita informação para um dia só, cheguei a pensar que estava vivendo um pesadelo. E que logo, despertaria do sono, com a sensação de que aquilo não tivesse acontecido.

Mas, quando vi que aquilo não era um sonho, tentava me comunicar através de gestos com o meu primo.

“Está doendo? Onde dói? Por que você não fala comigo?”, perguntava ele preocupado sem saber o que fazer.

Desesperados, decidimos ir até a cozinha pedir ajuda para a minha tia. A nossa entrada na casa, mais parecia a chegada de um furação. A minha tia que é extremamente insegura, quase cai de costas, ao ouvir o relato do filho. Desesperada sem saber o que fazer, corria pela casa (que nem barata tonta) de um lado para o outro, clamando por socorro. E eu vendo a cena, fiquei mais desesperada. Até que comecei a sentir as minhas pernas amolecerem. Nessa hora, a única coisa que me veio à mente, foi me apoiar na maçaneta da porta. De repente, a minha consciência apagou. Como se assistisse em um filme mal produzido, cheio de recortes bruscos e intervalos grandes, as cenas ficaram guardadas na minha mente.

Experiência (sobre)natural

Lembro-me de uns três adultos discutindo, com a emoção a flor da pele, o que fariam comigo, se me levariam para o hospital, ou não. Até que eu comecei a entrar em estado de coma, e ter alucinações. Acredito que comecei a transitar entre a vida e a morte. Pois, ora via um ambiente totalmente escuro, ora eu via a cozinha da minha casa. Sei que no começo, desse vai e vem – acredito que foram umas cinco vezes -, eu sentia medo, e tentava mentalmente, fixar o meu olhar na cozinha. Minha vontade era gritar desesperadamente, pela minha mãe. O mais interessante dessa história, é que a minha mãe – mesmo longe, e sem informações – sentia no coração (intuía) que eu estava passando por uma crise.

Passaram-se uns cinco minutos, eu, nessa agonia desatada comecei a sentir a minha mente e o meu corpo exaustos. Então, decidi caminhar pelo ambiente escuro. Como se flutuasse, em uma névoa macia, que envolvia o meu corpo confortavelmente. Intuía que deveria seguir em frente. Uma vez que a cada passo que dava, meu ser era invadido por uma paz interior e por um prazer, creio que inatingível na vida real. Por conta desses sentimentos, acredito que muitas pessoas em fase terminal, cansados das dores e do sofrimento, entregam-se a morte.

No meu caso, quando já havia desistido de “voltar” para casa, eis que fui surpreendida por uma força sobrenatural, que me fez retornar a realidade. Ao abrir meus olhos físicos, a primeira coisa que eu consegui focalizar, foi a peça do tabuleiro deslizando no chão, em meio ao suco gástrico. O único alimento que eu consegui identificar foram os grãos de arroz. O retorno aconteceu em questão de milésimos de segundo, o desembaçar da vista, veio acompanhado da ardência nas costas. Se você ainda não entendeu o final desta história, CALMA!

Já revelo o herói da história e o desfecho do drama. Por sorte a minha, o meu tio decidiu me socorrer ali mesmo, na cozinha. Acredito que ele foi um dos primeiros anjos que apareceram na minha vida. Depois do ocorrido, as pessoas me viam como se eu tivesse sobrevivido a um milagre. Afinal de contas, não fiquei com nenhuma sequela, a não ser o machucado na garganta por conta do atrito da peça. O procedimento que o meu tio usou, foi me segurar de ponta cabeça. Depois de algumas chacoalhadas, ele encheu (com vontade) as minhas costas de tapas. E assim, a bendita peçinha decidiu me deixar em paz, para eu: gritar, respirar, falar, cantar, viajar, dançar, amar, escrever… Enfim, viver.

Ufaaa, agora, vou tomar um ar!

(Terumi Oshiro)

Sobre mireflexo

Jornalista Sul-Mato-Grossense, residindo em Curitiba. Apaixonada por histórias de vidas, vivo contando casos. Sou crítica, observadora e criativa. Adoro conhecer pessoas e lugares diferentes. De preferência, só não me convide para comer Sashimi, Kibe Cru ou Carne-de-onça.
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